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A delicada situação territorial dos povos indígenas no Brasil

Reconhecido mundialmente por seus recursos naturais e uma das maiores florestas tropicais do mundo, a Floresta Amazônica, o Brasil também se caracteriza por apresentar contextos de permanentes agressões sobre os territórios indígenas que datam da colonização até os dias atuais. De acordo com o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010, o país possuiu 305 diferentes povos e 274 línguas indígenas, representando 0,4% da população brasileira.

A atual Constituição Federal Brasileira (de 1988) reconhece as subjetividades dos povos indígenas: sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições. Também foi reconhecido o direito originário sobre as terras e foi criado, o conceito de “terras tradicionalmente ocupadas”. Tudo isso em teoria. Também é dado ao governo federal a competência de demarcar as terras indígenas. Na prática o que ainda temos é omissão e morosidade na resolução dos conflitos envolvendo os povos indígenas no país.

Setores econômicos que mantém interesses sobre as terras e recursos naturais continuam se organizando para diminuir o alcance dos direitos conquistados em 1988 e nas legislações internacionais. É fácil encontrar diariamente notícias de violências contra pessoas e coletivos, sejam eles indígenas ou que defendam esses povos.

Para os povos indígenas “pertencer à terra, em lugar de ser proprietário dela, é o que define o indígena. A terra é o corpo dos índios, os índios são parte do corpo da Terra. A relação entre terra e corpo é crucial” (VIVEIROS DE CASTRO, 2016, s/p). Para os povos indígenas a terra não pode se converter em propriedade privada, porque elas pertencem ao “Criador”, os humanos estão aqui de passagem, da mesma forma que as fronteiras geográficas criadas pelos Estados não tem razão de existir.

 

A atual discussão e teoria jurídica no Brasil que quer retirar os direitos originários

Chamada de “Marco Temporal”, tal teoria afirma que somente teriam direito ao território aqueles povos que estavam vivendo sob ele no momento em que a Constituição Federal de 1988 foi promulgada. E se não estivessem vivendo neles, que então estivessem sob disputa judicial ou administrativa.

Essa teoria é um tanto absurda uma vez que os povos indígenas antes mesmo da criação da Constituição Federal de 1988 haviam sidos expulsos de seus territórios para construções de hidrelétricas, expulsos por grandes empresas, colonizadores, inclusive sob ameaça de uso de armas de fogo, uso de violência, expulsos pelo próprio governo através de seus órgãos como o Instituito Nacional de Colonização e  Reforma Agrária (INCRA) e transferidos para outros locais por órgãos do governo como por exemplo , o extinto Serviço de Proteção aos Índios (SPI[1])  e  a Fundação Nacional do Índio (FUNAI).

Outro ponto absurdo nesta teoria é de que as terras deveriam estar sob disputa judicial ou administrativa em 1988. Ocorre que desde a colônia até 1988 os indígenas brasileiros não tinham acesso direto à justiça. A partir de 1910 estavam vinculados ao Serviço de Proteção aos Índios (SPI).  Em 1928 o Código Civil no art.6º, IV declarou os indígenas relativamente incapazes, ou seja, que para exercer os atos da vida civil o fariam com a devida assistência. A ideia de incapacidade indígena estava ligada ao processo de colonização, ou seja, ao “grau de civilização” dos povos indígenas. Somente em 1988 a Constituição no seu artigo. 232 regulamentou aos indígenas o direito de ingressar em juízo por si próprios, sem necessitar de órgãos representantes.

Os grandes ruralistas e grandes empresas apoiam o marco temporal uma vez que essas terras poderão ser exploradas, comercializadas, produzirão mais transgênicos e eles continuarão a não observar o meio ambiente, uma vez que o lucro está acima das vidas humanas.

 

Como surgiu essa teoria?

O Supremo Tribunal Federal decidiu, em favor da criação da reserva indígena Raposa Serra do Sol[2] , em Roraima. Afirmou-se que a criação da reserva era legítima pois os povos indígenas eram ali residentes à época da Constituição de 1988. Em 2017, a Advocacia Geral da União afirmou que esse entendimento deveria valer para todas as reservas indígenas, sendo assim , somente os povos residentes nas terras durantes a promulgação da CF de 1988 teriam direitos a elas.

Aqui ficava localizada a antiga aldeia Xokleng, agora com a Barragem Norte Fonte: (CIMI, 2020).

 

Como está a situação agora?

 Sem data ainda para ocorrer, o Supremo Tribunal Federal deve julgar o recurso extraordinário 1.017.365, referente a um pedido de reintegração de posse movido pela Fundação do Meio Ambiente do Estado de Santa Catarina (FARMA) contra a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e indígenas do povo Xokleng.

A decisão se refere à Terra Indígena Ibirama-Laklanõ, área reivindicada e já identificada como parte de seu território tradicional. O recurso teve a repercussão geral reconhecida pelo plenário do Supremo em fevereiro de 2019. Ou seja, o que for julgado nesse caso valerá para todos os demais que envolvam demarcações de terras indígenas. O clima entre os povos indígenas no Brasil é de apreensão e preocupação com o que está por vir.

 

Nota:

O termo indígenas ou povos indígenas é no Brasil o termo atualmente utilizado. O Estatuto do Índio (Lei n. 6.001/73), vigente no país, foi criado com o propósito exposto no seu art.1º de “preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional”. Ainda que vigente, precisa de reformulação pois expressa uma violência simbólica contra a população indígena e atualmente deve ser interpretada conforme os preceitos da Constituição Federal de 1988 que não recepcionou o seu caráter integracionista. Em alguns países da América Latina como por exemplo, na Bolívia, Venezuela e Argentina, utilizam-se as denominações de “povos originários” ou “nações originárias”. Em países como Canadá e Estados Unidos o termo “Aboriginal”, “First Nations” e “Indigenous Peoples” são utilizados (ICT, 2016).

Escrito por Laisa Massarenti Hosoya and Clara Lorena Páez

Referências

BRASIL. Estatuto do Índio. Lei n.6001 de 19 de dez de 1973, 1973. Disponivel em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6001.htm>. Acesso em: 03 fev 2019.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, 1988. Disponivel em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 21 ago. 2019.

BRASIL. Decreto n.5.051 de 19 de abril de 2004. Convenção n. 169 da OIT sobre povos indígenas, 2004. Disponivel em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5051.htm>. Acesso em: 28 jan 2019.

CASTRO, E. V. D. Involuntários da pátria, 2016. Disponivel em: <http://www.ihu.unisinos.br/185-noticias/noticias-2016/554056-povos-indigenas-os-involuntarios-da-patria>. Acesso em: 12 mai 2019.

CIMI. STF inclui na pauta ação sobre TI Ibirama Laklaño que influencia recurso extraordinário com rercursão às demais terras no país, 2020. Disponivel em: <h https://cimi.org.br/2020/12/stf-inclui-na-pauta-acao-sobre-ti-ibirama-laklano-que-influencia-recurso-extraordinario-com-repercussao-as-demais-terras-indigenas-do-pais/>. Acesso em: 11 março 2020.

IBGE. Os indígenas no censo demográfico. Primeiras considerações com base no requisito cor e raça, 2010. Disponivel em: <https://ww2.ibge.gov.br/indigenas/indigena_censo2010.pdf>. Acesso em: 28 jan 2019.

LITTLE, P. E. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma antropologia da territorialidade. Anuário antropológico 2002-2003, Brasília, p. 251-290, 2004.

STF. Petição 3.388-4 Roraima, 2005. Disponivel em: <http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2288693>. Acesso em: 22 ago 2019.

STF. Ação Cível Originária 2.323 Distrito Federal, 2018. Disponivel em: <http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4520772>. Acesso em: 08 mai 2019.

 

[1] Em 1967 foi criada uma comissão para apurar as irregularidades do SPI. O documento conhecido como “Relatório Figueiredo” trouxeram a tona os casos de corrupção, escravidão, abuso e maus tratos aos indígenas. Além disso crimes como “doação criminosa de terras” e “alteração de documentos oficiais”.

[2]O processo de reconhecimento territorial que envolve a Terra Indígena Raposa da Serra do Sol, iniciou-se em 1917 e foi concluído administrativamente em 2005. Ainda assim a questão chegou ao STF que reconheceu o direito indígena sobre as terras.