Escrito por Clara Lorena Páez e Laisa Massarenti Hosoya
A falta de água limpa, suficiente e acessível é uma das preocupações dos movimentos que lutam pela soberania alimentar. Uma das causas que impedem o pleno acesso a esse direito é a privatização, que ocorre em formas e escalas muito diversas. Isso inclui acumular e modificar o ciclo natural da água, o que deixa muitas regiões sem esse recurso vital. Entre os responsáveis por modificar este ciclo estão as hidrelétricas, muitas delas multinacionais, que operam sob o aval dos governos em todo o mundo.
Organizações como a Via Campesina[1] exigem que os governos garantam os direitos “à água” e “para a água”. O que isso significa? Para alcançar o acesso universal à água, os direitos da “água” devem primeiro ser respeitados, ou seja, seu ciclo e sua integridade em todos os seus usos, o que inclui a produção de energia. O problema das hidrelétricas é que elas impedem que a água retorne à terra naturalmente e deixam animais, vegetação e pessoas sem acesso a ela. Além disso, esses projetos também geram a expulsão de milhares de comunidades que, na melhor das hipóteses, são realocadas para locais que não têm acesso direto às correntes de água. Isso sem considerar que muitos deles se dedicam à agricultura e à pecuária como forma de vida (EUROVIA, 2012).
No México, o Movimento de Atingidos por Barragens e em Defesa dos Rios denuncia que “as barragens são um dos principais instrumentos para realizar a privatização dos recursos hídricos, elétricos e energéticos” (MAPDER, 2004). Segundo esta organização, os efeitos da construção deste tipo de estrutura vão desde a degradação das bacias e a obstrução da recarga dos aquíferos, até às alterações climáticas que se percebem atualmente. Além disso, ressaltaram que sem acesso à água e à terra, a soberania alimentar é inviável.
Mas … o que é soberania alimentar? E por que isso é tão importante?
A soberania alimentar é uma alternativa à economia de mercado e à globalização do sistema alimentar. Para o movimento Via Campesina (2013) é “direito dos povos, países ou dos Estados, definir a sua política agrícola e alimentar, sem dumping contra terceiros países”. Uma das principais condições é que os agricultores locais forneçam alimentos para suas populações. Para fazer isso, eles devem ter acesso à terra, sementes, recursos financeiros e água em qualidade e quantidade suficiente para todos.
Foi em 1996 que o conceito de soberania alimentar se instalou no debate internacional. Sob a liderança da Via Campesina, os participantes do Fórum de Organizações da Sociedade Civil elaboraram uma declaração intitulada “Benefício para poucos ou comida para todos” (Fórum de ONGs, 1996). Fizeram, assim, uma alusão direta à proposta de segurança alimentar em que as empresas do agronegócio monopolizam os benefícios.
“A globalização da economia mundial, aliada à falta de responsabilidade das empresas transnacionais que impõem padrões de hiperconsumismo, aumentaram a pobreza no mundo. A economia atual é caracterizada pelo desemprego, baixos salários, destruição das economias rurais e ruína das famílias camponesas.” (ONG Forum, 1996).
Essas organizações não hesitaram em apontar a industrialização agrícola como responsável pela destruição do meio ambiente e por “envenenar o planeta e todos os seres vivos” (sic). Argumentaram que a perda da capacidade produtiva das comunidades as colocava em uma situação de insegurança ainda mais grave.
Desde a implantação do modelo neoliberal de globalização corporativa, os preços artificialmente baixos e o dumping constante tornaram cada vez mais inviável a subsistência da agricultura tradicional. Em resposta a esse problema, a Via Campesina propõe taxar as importações para que a produção local seja sustentável. Por isso, além da participação ativa dos povos na definição da política agrária, é necessária uma maior presença do Estado para a implementação das medidas de controle do mercado interno.
Além de advogar pela liberdade de produção de alimentos, a soberania alimentar também exige que as populações tenham liberdade de decidir o que comer, de saber a origem e as formas de produção dos alimentos que compram. No Fórum pela Soberania Alimentar (2018) foram definidos os seis pilares fundamentais dessa perspectiva:
- Alimentos para as pessoas no centro das políticas. A comida é mais do que uma mercadoria.
- Respeito pelo trabalho de todos os fornecedores de alimentos e apoio a estilos de vida sustentáveis.
- Redução da distância entre fornecedores e consumidores. Rejeição de dumping e assistência alimentar inadequada. Resistência à dependência de empresas transnacionais.
- Controle dos fornecedores locais de alimentos, reconhecimento da necessidade de compartilhar territórios e rejeição à privatização dos recursos naturais.
- Promoção do conhecimento tradicional, transmissão deste conhecimento às novas gerações através da pesquisa e rejeição de tecnologias que ameaçam os sistemas alimentares locais.
- Harmonia com a natureza, rejeição do uso intensivo de monoculturas industrializadas e outros métodos destrutivos.
Por que uma perspectiva de segurança alimentar não resolve o problema?
Na década de 1980, as Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) lançaram uma campanha para combater a fome no mundo. Nesse contexto, surge a ideia de que a forma mais eficiente de se alcançar a segurança alimentar é promover mercados eficientes e desimpedidos. Dessa forma, estaria garantido o acesso da população a alimentos seguros e nutritivos em quantidades suficientes para ter uma vida ativa e saudável (Robles, 2015, p.2). Os primeiros interessados nesta proposta foram as grandes empresas multinacionais de alimentos. Assim, o conceito de segurança alimentar foi vinculado à produção agrícola em larga escala, promovendo as monoculturas. Em pouco tempo, tanto a aquisição quanto a distribuição de alimentos em nível global foram monopolizadas por grandes corporações (Uphoff, 2002; Schanbacher, 2010; in Macrae, 2016, p. 3).
Segundo a FAO, a segurança alimentar consiste no acesso de todas as pessoas, em todos os momentos, aos alimentos necessários para uma vida saudável. Essa conceituação ignora tudo o que diz respeito à origem e formas de produção desses alimentos, portanto, não deixa espaço para o debate sobre a concentração dos bens e dos meios de produção (Pimbert, 2009, p. 43).
Se resumíssemos o problema da fome a insuficiência de alimentos a solução seria simples: aumentar a produção. Se existe uma má distribuição de alimentos, a resposta seria à liberação dos mercados. A isto seguiria a intensificação da educação nutricional, por meio da qual podemos moldar hábitos e preferências alimentares. Ao que parece isso resolveria o problema da insegurança alimentar, mas é questionável por duas razões principais: A primeira é a alta do custo ambiental do sistema de produção intensiva dos alimentos. A segunda é a falta de resposta as demandas dos grupos de camponeses e pequenos produtores sobre a democratização dos recursos produtivos.
Deixar que a responsabilidade de alimentar as comunidades locais esteja nas mãos de grandes empresas multinacionais pode agravar ainda mais a insegurança alimentar. Essas empresas criam uma relação de dependência subsidiando e importando alimentos baratos em países pobres, ou dando-lhe assistência alimentar gratuita (Pimbert, 2009, p.43).
É importante que os governos priorizem as comunidades para aprovar e implementar projetos de infraestrutura que modifiquem os ecossistemas e coloquem em risco diferentes tipos de vida. Nenhum país deve continuar defendendo um modelo de desenvolvimento que beneficia poucos, ao mesmo tempo que coloca em risco a segurança e a soberania para alimentar a maioria.
Referências bibliográficas
EUROVÍA. (2012). La cuestión del agua es indisociable a la Soberanía Alimentaria. Coordinadora Europea Vía Campesina. https://www.eurovia.org/es/la-cuestion-del-agua-es-indisociable-de-la-soberania-alimentaria/
FAO. (2011). La seguridad alimentaria: información para la toma de decisiones. Guía Práctica. Programa CE-FAO. http://www.fao.org/3/al936s/al936s00.pdf
Foro por la Soberanía Alimentaria (2017). Declaration of Nyéléni. https://nyeleni.org/DOWNLOADS/Nyelni_EN.pdf
Foro por la Soberanía Alimentaria (2007). The Six Pillars of Food Sovereignty. https://foodsecurecanada.org/sites/foodsecurecanada.org/files/SixPillars_Nyeleni.pdf
MAPDER (2004). Declaración de Aguascalientes. Movimiento de Afectados por las Presas y en Defensa. https://www.fundacionhenrydunant.org/images/stories/biblioteca/derecho-a-la-alimentacion/Soberania_alimentaria_derecho_y_compromiso_de_los_pueblos_%20asociacion_nacional_de_mujeres_rurales_e_indigenas.pdf
NGO Forum. (1996). Beneficios para pocos o comida para todos. https://www.iatp.org/sites/default/files/Profit_for_Few_or_Food_for_All.htm
Pimbert, M. (2009). Mulheres e soberania alimentar. Revista Agriculturas: experiências em agroecologia, Rio de Janeiro, v. 6, n. 4, pp. 41 45.
Robles, W. & Veltmeyer, H. (2015). The politics of agrarian reform in Brazil: the landless rural workers movement. Palgrave MacMillan.
Schanbacher, W. D. (2010). The Politics of Food: The Global Conflict between Food Security and Food Sovereignty. Santa Barbara, Denver, Oxford: Praeger.
Uphoff, N. (2002). “The Agricultural Development Challenges We Face.” In N. Uphoff (ed.) Agroecological Innovations: Increasing Food Production with Participatory Development. London: Earthscan.
Vía Campesina. (2013). Que es la soberanía alimentaria. https://viacampesina.org/es/que-es-la-soberania-alimentaria/
[1] A Via Campesina é um movimento internacional que defende os direitos das pessoas sobre seus territórios, sementes, água e florestas. Suas lutas giram em torno da soberania alimentar, apoiando a agricultura camponesa sustentável, reforma agrária, questões de gênero e direitos humanos, biodiversidade, questões climáticas e de justiça ambiental, entre outras. Mais informações em: https://viacampesina.org/en